sexta-feira, 21 de março de 2008

Os sentidos da vida e da obra, em Natércia Freire

“Os Anjos são rijos como as pedras
E leves como as prumas.”[1]

Vitorino Nemésio, “Anjos”, in O Pão e a Culpa.


Os sentidos da vida e da obra, em Natércia Freire


As noções de vida e morte, mais do que desígnios de um princípio e fim, parecem ser frustradas tentativas para seriar e apaziguar toda a nossa angústia existencial. Mas nem as ondas sabem falar do mar e nem o mar ouve as ondas e, por isso, eis duas palavras que se entendem na pluralidade, pois plural é a voz dos povos, assim como plural é a voz do indivíduo.
A voz da poetisa Natércia Freire habita numa Casa e nessa Casa há anjos, há crianças que brincam desconhecendo a brincadeira, ali num Tempo anterior ao próprio nascimento (“As crianças permaneciam invioladas,/ Possuídas de secretas imagens/ E de tudo quanto foi antes do próprio nascimento”)[2], e à própria palavra (“Mas as crianças germinavam, mudas e sábias”)[3], onde se recolhem o sol, o mar, as cegonhas, o lago e os choupos. Um Tempo antes do tempo, onde a memória se universaliza (“As ordens recebidas num sol antigo”)[4] e nega as mortes prescritas pela distância que os homens colocam entre si ( “Mas a distância de cada dia, entre os homens, /Escurece-lhes a memória finita”)[5] e pela mentira que semeiam entre uns e outros (“Ao teu canto, ao teu riso/De ave do Paraíso,/Opuseram cegueiras”)[6].
E para melhor expressar esse Tempo Absoluto e fundamental que é a Infância, lembrem-se as palavras de Jacinto do Prado Coelho, escritas na “Introdução” à primeira edição de Poesias Escolhidas (1942-1952), com quem Natércia partilhou o tempo de estudos no Colégio Portugal - Brasil: a Infância nunca morre para sempre: perdura e vai-se transformando, nos recessos mais fundos da alma; o privilégio do Poeta é o milagre repetido da infância recuperada (...)[7]
Eis o nascimento da poeta, inscrito no movimento criativo inerente ao Cosmos. E se a voz do sujeito poético habita na Pátria do sonho, da memória, do infinito, da palavra poética, entendida como sentido original, o Cosmos não deixa de ser uma realidade em constante transição, que obriga o sujeito poético a viajar. Di-lo em “Logo que Nasci”, poema inserido na obra Liberdade Solar, de 1978:

Logo que nasci
Foi-me dada ordem
De me procurar.
Logo assim e aqui
Não vou ter descanso
Em nenhum lugar.[8]

Passageiro de si próprio e do mundo, viajante estacionado entre o Eu e os Outros, entre a distância e o ser, entre a memória finita e infinita, entre um Tempo Absoluto, que é o tempo em que habita o Poema e a efemeridade terrena, entre a vida e a morte e entre o dia e a noite, o sujeito poético tende ao apagamento de si próprio e ao desprendimento do mundo.
Sujeito ao devir, qualidade criativa do Cosmos e entidade geradora de sentido, o Eu como que se suspende nesse movimento entre o efémero e o etéreo. Ana Marques Gastão diz, a propósito, no ensaio publicado na revista “Phala”: Há, sempre, na poesia de Natércia Freire a noção de uma suspensão, de um movimento circular e ascendente sugerindo a procura de sentido para um sujeito que reflecte sobre a iminência da morte, num estado de “desprazer”, sim, mas também na certeza de uma “harmonia não visível”....[9] Nesse movimento ambíguo a que está sujeito o Eu, divinizado na figura do Anjo Branco, confundem-se e entrelaçam-se dois tempos: o da Infância, imortalizado no sonho e na memória e o da perda transitória da Infância, a que Jacinto do Prado Coelho apelida de o “enterro “ de si própria.

Em 1964, ao publicar Liberta em Pedra ouve-se o grito da plenitude humana. Ali, naquele corpo permanente, em que se transformou a palavra, a poesia existe e o poeta atinge a liberdade:

Liberta, liberta em pedra.
Até onde couber
Tudo o que é dor maior,
.........................................
Importa a liberdade
De não ceder à vida,
Um segundo sequer.

Ser de pedra por fora
E só por dentro ser[10].

Para João Gaspar Simões, esta obra é, acima de tudo, um protesto contra os limites da palavra poética, que nunca conseguirá exprimir a plenitude do ser humano[11]. Diz, então: Foi preciso que o poeta se “libertasse em pedra” para que a sua obra poética se mostrasse aquilo que de facto é na sua funda perspectiva: um protesto contra as próprias limitações da menos limitada das formas de expressão. Mas não será esse estado petrificado uma afirmação do perpetuar da memória e do superar das limitações temporais e existenciais? Não será o imperar da Infância, desse Tempo Absoluto, sobre o efémero presente? Isto é, o dar a conhecer aos povos a descoberta do Paraíso Perdido, onde a palavra, até então designação de impossibilidade, se afirma como, Casa, espaço/expressão de liberdade e de existência do Ser. O Eu, viajante, entre si e os outros, descobre a sua Pátria de origem: O Verbo.
Contudo, o Verbo, princípio do Cosmos e da Vida torna-se Pátria de estrangeiros, de gente exilada na sua própria Casa. É que o devir é natural da Vida, e Natércia Freire torna-se vítima do delírio nacional: a liberdade que tão bem soubemos conquistar, muitas vezes não soubemos utilizar, analfabetos do verdadeiro existir, aprenderemos com os nossos próprios erros o verdadeiro sentido da palavra liberdade.
E, assim, houve um dia em que o Anjo Branco foi expulso da sua Casa e ferido pela cegueira dos homens livres, refugia-se destes:

Fujo dos homens
Como os lobos fogem
E não me sinto lobo.

Escondo-me em fojos
Como os lobos fazem
E não me sinto lobo.

Ergo à Lua o meu uivo angustiado
E não me sinto lobo.

Os meus ouvidos outros
Ouvem queixas
De lobos espectrais.
E não me sinto lobo.

Alvejaram-me a tiro
Entre os olhos leais
E não me sinto lobo.

Se estoiro como o lobo
Que também tem um astro
Repercutindo ânsias solitárias
Terríveis e humildes
Em esferas mudas várias

Deito um rasto de sangue
Um visível pasto
A vampiros humanos.


E assim na morte vamos
Lobos, irmãos, iguais.[12]

O mar e o sol estão com a infância, e entre estes e o tempo presente ergueu-se uma eterna distância. O Anjo chora o “nosso chumbo, hora a hora”. Vidente dos sonhos, das estrelas, do sol e do mar, passageiro entre a sua adiada Pátria e o presente, eterna criança, a poetisa, só, entre os homens fala da morte, a sua- “A morte de calar”:

As viagens que sou prenderam-se em redomas
Ao corpo das palavras. À morte de calar.
...................................................................
Não tenho mais nada a escrever sobre as ondas
E, mesmo que tivesse, ninguém leria o Mar. [13]

Esperemos que o seu último livro Antologia Poética, publicado no ano que passou, seja um indício da nossa própria aprendizagem, para que não mais se silenciem aqueles que falam o Amor.

[1] Nemésio, Vitorino, “Anjos”, ( O Pão e a Culpa), in Obras Completas, vol. II, pg 217, INCM, 1989
[2] Freire, Natércia, “As crianças” ( Os Intrusos), in Antologia Poética, Assírio & Alvim, pg 93, 2001
[3] Idem, Ibidem
[4] Idem,Ibidem
[5] Idem, Ibidem
[6] Idem , “Nada Mais” ( Liberta em Pedra), in Antologia Poética, Assírio & Alvim, pg 69, 2001.
[7] Coelho, Jacinto Prado, “ Introdução” (à 1ª edição de Poesias Escolhidas), in Obra Poética, vol. I, INCM.
[8] Freire, Natércia, “Logo que nasci” ( Liberdade Solar) , in Antologia Poética, Assírio & Alvim, pg. 117
[9] Gastão, Ana Marques, “Antologia Poética”, in revista “ A Phala”, nº 90, Assírio & Alvim, Dezembro de 2001.
[10] Freire, Natércia,” Liberta em Pedra”, in Liberta em Pedra
[11] Simões, João Gaspar, “Liberta em Pedra” ( Crítica II), in Obra Poética, vol I, INCM, 1991
[12] Idem, “Como os lobos”, ( Liberdade Solar), in Antologia Poética, Assírio & Alvim , pg. 118, 2001.
[13] Idem, “ A morte de calar” ( Foi apenas Ontem), in Antologia Poética, Assírio & Alvim, p6, 123, 2001.

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