sexta-feira, 21 de março de 2008

O silêncio das palavras

O silêncio das palavras

Talvez a mais sublime forma de expressão esteja no silêncio, onde nada se ouve porque nada se diz. Que sons terão as coisas sem as palavras para as chamarmos? E que nomes lhe dará o silêncio?
Em José Luis Peixoto, afirma-se uma poética que procura ruir um mundo tornado inexpressivo e inaudível pelo excesso de dizeres de chamamentos. “As palavras calaram-se dentro dos gritos”[1], como se o mundo tivesse perdido a capacidade de se expressar, nessa exaltante arbitrariedade do chamar por chamar, do chamar sem conhecer: a palavra desvincolou-se, há muito, do verdadeiro sentido das coisas e do mundo, instituindo em vez de libertar. Por isso, diz “ [o poema] não é a/ raiz de uma palavra que julgamos conhecer porque só podemos/ conhecer o que possuímos e não possuímos nada”. [2]
E aqui está o grande equívoco da torre de Babel: as palavras são grilhões que criámos entre as coisas e nós próprios e, deste modo, impusemos-lhe um sentido que é estranho à sua natureza, mas também à nossa: “ a palavra poema existe para não ser escrita como eu existo/ para não ser escrito ...”[3] Esta realidade, conduz, acima de tudo, a um novo escutar das coisas no mundo, a um deixar expressar de sentidos por si próprios, como se cada coisa tivesse a capacidade de contar a sua história, que não é a do homem, mas a sua: “há o silêncio circunscrito à tua volta/ e no entanto a tua pele é o silêncio”.[4]
O silêncio- tinta emprestada da terra, pele que com se veste a nudez do mundo, instrumento de sopro com que o sujeito poético produz o sentido do poema:

...............................................
Para que te conheça dá-me algum
Do silêncio que me dás para que
Nele te diga pele terra se de noite[5]

Natália Correia diz num poema que “o silêncio das palavras está onde nos esquecemos delas”, num tempo antes da memória, ou melhor, da consciência da memória, do nome das coisas. O poeta José Luis Peixoto situa na inocência da infância, o verdadeiro sentido da palavra poema: “o poema é quando eu não/conhecia a palavra poema, quando eu não conhecia a letra p e comia torradas feitas no lume da cozinha”.[6] Por isso, uma gota de água que pinga pinga não é uma gota de água é a gota que pinga pinga no quintal da minha infância, assim como a tua pele é também o silêncio circunscrito a si.
Ora, o que se nos apresenta não é a negação da possibilidade de escrita, mas sim uma rescrita das coisas pelo seu sentido:

pergunto se posso dizer o teu nome a uma flor
flor o teu nome sussurrado pétala a pétala
letra a letra uma flor desfolhada na terra[7]

A experiência que o sujeito poético tem das coisas levam-no a novas palavras na tentativa de expressar o seu sentido, por isso, a flor deixou de ser uma flor para passar a ter o teu nome, com que te chamo e digo esta flor. Mas neste “emprestar” de nomes há também duas naturezas que se transformam: a flor e “tu”, porque o nome passou a traduzir sentidos, que pareciam antagónicos, e não coisas.
Diz em Arte Poética “eu, eu só sei escrever o seu sentido”.[8] É apenas este o conhecimento do poeta, sentir o sentido prescrito nas coisas:

eu sou um homem vivo a sentir cada pedra,
eu sou um homem vivo a sentir cada montanha
eu sou um homem vivo a sentir cada grão de areia.
desordenadamente, eu sou alguém que é eu sem o saber[9]

É este o destino do poeta, dormir nas costas do mundo e chamar-lhe cama, senti-lo passar nas mãos e sentir apenas isto, uma vida feita de mortes, a sua e a do outro, emprestar-lhe a sua caligrafia e navegar sem sentido num “oceano infinito”, até ao dia em que “tudo será arrumado...”:

Os segredos serão organizados nas indeléveis palavras.
As aves de outrora existirão nas folhas paginadas,
na pele e nos planaltos
as aves, os pombos, as cegonhas, planarão
dentro da terra e da cinza dos arquivos.

o pó será organizado um dia.
cada homem será uma chama nas estantes das bibliotecas.
.........................................................................
um dia, depois de mim,
estes versos serão ossos
mudos e incompreensíveis.
as flores sufocarão no ar que respirei.
as flores crescer-me-ão do peito.[10]

Assim se escreve o livro do mundo, por palavras que aproximam, por palavras que não são palavras, mas flor mar luz o teu nome emprestado a todos eles e “eu”, que sinto todas estas coisas não tenho nome e sou todos os nomes.
[1] Peixoto, José Luis, “ A morte é esta caneta que não é os meus dedos”, pg. 26, Quasi
[2] op.cit, “Arte Poética”, pg. 8
[3]Ibidem
[4]Ibidem, 18
[5]op.cit 71
[6]op.cit, pg. 9
[7]op.cit. 61
[8]op.cit. og. 9
[9] op.cit. pg 41/42
[10]op.cit pg.29

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