sexta-feira, 21 de março de 2008

Conchas


Manhã


Notas introdutórias- uma possível leitura da poesia de Manuel da Fonseca



O Largo- entre o Sonho e Real

A casa do poeta, por tantos e tantas vezes cantada, é um motivo que não poucas vezes se vê tratado na literatura de que não é excepção o neo-realismo.
Ora, a jovem geração neo-realista que nos anos trinta desafiava os academistas modernistas, defensores de uma arte pura, individual e alheada do mundo, vem defender um novo humanismo, protagonizado por um “novo homem” e uma “nova mulher”, que fraternalmente e apenas deste modo iriam revolucionar o mundo e a sua história ao lutarem pela “felicidade universal” onde a arte aparecia intimamente ligada à Ideologia.
É com base neste ponto (Arte e Ideologia) que Eduardo Lourenço constrói o sentido de liberdade que se vive na “casa neo-realista”. Diz, então, no prólogo ao livro Sentido e forma na poesia neo-realista : “Mesmo que se admita que a Ideologia comporta consequências que colidem com uma concepção mais bem fundada da liberdade espiritual, o simples facto de ela ter sido eleita por aqueles que ninguém obriga a perfilhá-la os tornaria livres. Uma prisão que nós escolhemos por essa escolha se torna a nossa casa.” Se para muitos é discutível a liberdade criativa de uma arte onde o sentido estético tem por orientação uma Ideologia, para Eduardo Lourenço tal não é motivo de grande discussão, aliás, torna-se característico da liberdade criativa e espiritual desta geração e casa da próprio artista. Mais adiante diz «e essa “casa habitável” que o neo-realismo adoptou, defendeu e escolheu, mais não é do que um “sonho recusado” e um “mito incarnado algures”».
Manuel da Fonseca, escritor santiaguense e figura singular na escrita neo-realista, encontra na imagem do “Largo” a metáfora do Sonho neo-realista de que Eduardo Lourenço falava, “mito incarnado” na infância perdida, onde as crianças jogam ao pião ou descobrem através de um “vidro extraordinário” “as sete cores do arco-íris!” (“Primeiro”), onde as raparigas passam e o poeta se fascina com o mistério “sobre os peitos debaixo das blusas” (“Segundo”), ou, então, a partir da qual se desafia o poder instituído ao atirar “uma pedrada tão certeira/ que levou o chapéu do Senhor Administrador” (“Segundo”) e se aprende ouvindo as estórias dos mais velhos (“ E nós sentados no chão. /Cansados./Dizia o avô:- quando eu era novo.../E o avô era novo/ e tinha um cavalo que corria, corria...).
O “Largo” é a casa onde habita a escrita do Poeta, as suas personagens, e uma ideia de um Alentejo fértil, rico e frutuoso, eterno e universal concretizando o Sonho de um “novo homem”. É um espaço de encontro dos homens , e onde as crianças aprendem a ser gente.
E quem nunca desceu ao Largo, quem nunca nele brincou ao pião ou se excitou com as raparigas casadoiras que passavam, ou ousou desafiar os poderes instituídos que ali passavam?
Então, é um canto triste e desolador que se escuta na voz do Poeta. Escutêmo-la no poema “Tragédia” :

“Foi para a escola e aprendeu a ler
e as quatro operações, de cor e salteado.
Era um menino triste:
Nunca brincou no largo
Depois foi para a loja e pôs a uso
aquilo que aprendeu
-vagaroso e sério,
sem um engano,
sem um sorriso.
Depois, o pai morreu
Como estava previsto.
E o Senhor António
(tão novinho e já era “O Senho António”!...)
ficou dono da loja e chefe da família...
Envelheceu, casou, teve meninos,
Tudo como quem soma ou faz multiplicação!...
E quando o mais velhinho
Já sabia contar, ler, escrever,
O Senhor António deu balanço à vida:
Tinha setenta anos, um nome respeitado...
-que mais podia querer?
Por isso,
Num meio-dia de Verão,
Sentiu-se mal.
Decentemente abriu os braços
E disse: - Vou morrer.
E morreu!., morreu de congestão!...


Quem nunca desceu ao Largo nunca foi livre, nunca foi feliz porque nunca soube ser homem. Mas esse espaço eternizado, que era sinónimo de liberdade e de plenitude humana e de universalidade torna-se um espaço marginal, circunscrito às memórias do poeta e à nostalgia de uma infância perdida:

“Quando eu era menino...
Ah, só agora penso que fui menino
E o que isso é maravilhoso ter-se sido!
Mas este livro é impossível ler-se
Nem uma linha sequer...”

Um espaço pessoal e particular “impossível ler-se/ Nem uma linha sequer...”, di-lo no poema “Manhã de Maio”, que não encontra sentido ou equivalência no plano real. E é ao firmar raízes nas vivências e experiências particulares do Alentejo, nas personagens e suas vivências que a escrita neo-realista de Manuel da Fonseca se limita e impossibilita enquanto tal, caindo num canto choroso e desolador de mágoas e nostalgias por uma “infância perdida” e nunca mais recuperada. Perde-se o sentido universal que encontramos nos primeiros poemas de Rosa dos Ventos e passamos a conviver com um poeta em fuga eterna do Real para o Sonho:

“Na noite calada e quieta como um grande segredo,
andando ao deus-dará nestas ruas desertas,
saio lá do fundo do meu sonho
e olho ao redor de mim.

Cá fora há tudo o que não é do meu sonho:
O frio, e os altos prédios fechados,
E as ruas mortas como paisagem de cemitérios.
...............................................................”





E se inicialmente temos um sujeito poético que num canto universal diz em As setes canções da Vida

“abarco a Vida toda
e parto
para os longes mais longes das distâncias mais longas
...................................................
Grito e estremeço
Perdido o sentido das pátrias
E a cor das raças,
Livre para todos os caminhos dos homens!”

Na “Canção do Maltês”, deparamo-nos com uma interiorização da caminhada e uma marginalização da figura do poeta, na personagem do maltês, do vagabundo, em relação às suas gentes. O “moço do interior”, farol das gentes perdidas no mar, metáfora do próprio poeta, que tinha como missão guiar a multidão anónima pelo caminho da felicidade colectiva, dá lugar a uma personagem em fuga, errante pelos caminhos do mundo, que “leva o Sol na algibeira”, preso ao seu Sonho, à sua infância e à sua nostalgia:

“Bati à porta do monte
porque sou um deserdado
..........................................
Despedi-me até mais ver
Que a gente da minha raça
Mal o Sol tenta nascer
Ergue-se e parte pelo mundo
Sem se lembrar de ninguém”

Deparamo-nos, então, com as palavras de Eduardo Lourenço: “na poesia neo-realista a Ideologia revelar-se-á menos como sujeito de inspiração do que quadro”, verificando-se, afinal, “a existência da predominância da temática romântica: o conflito entre o Sonho e o Real.”

A Vida- o caminho da Utopia

Rosa dos Ventos é o primeiro livro publicado com a ajuda de amigos, em 1940, que segundo Alexandre Pinheiro Torres contém “alguns dos poemas formalmente mais belos deste século” e que vêm solidificar um movimento que há já muito anunciava um novo humanismo, trazendo uma “ reviravolta temática na poesia portuguesa”.
Nele, espraiam-se, desde início, os grandes motivos e temáticas que irão orientar a sua poesia. A primeira parte, “Sete canções da vida”, abre com o belíssimo poema “Primeira”, onde se canta a Vida, na metáfora da mulher sedutora e sensual, de contornos clássicos, uma Vénus inspiradora dos poetas renascentistas (sonhada, mas inalcansável), que no século XX serve de inspiração ao Poeta neo-realista que sonha com o amor fraterno- a União entre povos.

“Vida: sensualíssima mulher de carnes maravilhosas
cujos passos são horas.
.........................................
Vou seguindo teus passos
Lutando e sofrendo
E ficam abertos meus braços:
Nunca te alcanço!”

O sujeito poético afirma, assim, a natureza clássica da mulher, divina, utópica, ideal, mas repare-se que falamos da Vida associada à luta e à revolta, à acção, portanto, é de todo um sonho para a Humanidade que o Poeta fala, se bem que ainda não está declarada a fraternidade do seu Sonho. O registo poético encontra-se, apenas, no plano pessoal:

“À punhalada dilacero a folhagem
e abro clareiras
na floresta milenária do meu caminho.”

A afirmação do cenário idílico segue no poema “Segunda”, onde são claras as referências à famosa alegoria da “Ilha dos Amores”, da epopeia Os Lusíadas, de Camões. A união entre o poeta e a musa (rapariga casta) é perfeita, a Eternidade foi alcançada:


“-Bom dia, Sol de todos os países!
Os nossos corpos formaram laços,
A Eternidade envolve-nos.”

E o sujeito poético interpela agora os seus irmãos:

“-por que não vamos colher os frutos que semeámos?
Por que não vamos, irmãos, por que não vamos?!
Interpelação dos homens, massas anónimas que “cruzaram caminhos, devassaram florestas, escalaram montanhas” e que, agora, o poeta procura orientar para projectos maiores, a felicidade social

João Pedro de Andrade: algumas possíveis notas

João Pedro de Andrade nasceu em Ponte de Sôr no ano de 1906, fruto de um casamento que gerou sete filhos. O escritor foi o mais novo dos descendentes da família Andrade.
Com a morte prematura do pai, a sua família muda-se para Lisboa, tinha, então, o jovem dez anos de idade. Na capital tem a oportunidade, ainda bastante novo, de trabalhar como paquete no jornal “O Século”, enquanto à noite estudava no curso comercial, que lhe permitiu vir a trabalhar em contabilidade.
Nas Letras, João Pedro de Andrade foi um autodidacta. A sua paixão por esta área, principalmente pelo teatro, levou-o a participar em algumas peças de teatro amador, entre eles o grupo de Araújo Pereira “Teatro Juvénia”. A sua ligação com o “Grupo Dramático da Sociedade de Instrução Guilherme Cossoul”, permitiu-lhe trabalhar com grandes actores: Jacinto Ramos, Raul Solnado, Varela Silva. Esteve, também, ligado ao “Teatro Estúdio do Salitre” de Gino Saviotti, onde viu em cena as suas peças O Saudoso Extinto e Curva do Céu (1947) ou Antes de Começar (1949).
Relativamente ao “Teatro Estúdio de Salitre” é importante dizer que o seu aparecimento está associado a um “movimento” de renovação do teatro português, tendo por base todo um objectivo programático, que urgia implantar no cenário nacional: “encontrar de novo - nas palavras do texto, no jogo das cenas, nos gestos dos actores, nos agrupamentos, nas cores, nas luzes e na atmosfera cenográfica – o ritmo, o estilo, a poesia de representação”. Tendo-se a consciência de que era necessário libertar a dramaturgia nacional da hegemonia das escolas naturalistas e realistas, o Teatro do Salitre, inaugurado em Abril de 1946 e fundado por Gino Saviotti, traz para os palcos nacionais novos autores (Almada Negreiros; Branquinho da Fonseca e o “nosso” João Pedro de Andrade) e novos actores. A esta onda de renovação está associado João Pedro de Andrade, tendo algumas peças que escreveu- Continuação da Comédia e A Glória dos Césares-, fortes influências do dramaturgo italiano Pirandello, o que só revela um conhecimento actualizado e rigoroso do que se passava “fora de portas”, no contexto cultural internacional. Aliás, a Continuação da Comédia, peça pirandelliana, publicada em 1939 na revista Presença, foi escrita em 1931, ano em que Pirandello visita Portugal a convite de António Sérgio, para participar num congresso da “Associação Internacional de Crítica”. Esta peça subiu ao palco no ano de 1948, através do “Pátio das Comédias. (REBELLO, Luiz Francisco, História do Teatro Português, Publicações Europa-América, 1967) (REBELLO, Luiz Francisco, Prefácio in João Pedro de Andrade Teatro II, Acontecimento, 1999)
Aos 21 anos, portanto, por volta de 1923, o jovem dramaturgo volta ao Alentejo, instalando-se em Santiago do Cacém, onde veio a casar, em 1934, com Alda Gonçalves, professora primária, e com quem teve a filha Clélia. Em 1936, foi preso pela PIDE, por denúncia de infundada actividade política. Esteve em Lisboa e em 20 de Novembro de 1936 foi transferido para Peniche, onde esteve até Fevereiro de 1937, ano do nascimento da sua segunda filha, Sílvia. Em 1937, nasce o terceiro filho, Júlio Pedro, vindo a radicar-se, definitivamente, em Lisboa.
Veio a falecer a 12 de Fevereiro de 1974, não chegando a vislumbrar as luzes de liberdade que pouco depois viria a colorir todo o país e que lhe permitiria soltar-se dos agrilhões da censura que tanto tinham procurado limitar o seu trabalho literário, chegando algumas das suas peças (exemplo Maré Alta-1947 que apenas foi publicada no ano 2000) a ser censuradas. Aliás, o próprio refere na recensão crítica "d’A Forja" na Seara Nova (9 de Abril) “os excessos puritanos de certo organismo zelador dos bons costumes”, que impediam a publicação das peças que iam sendo escritas e que levavam ao empobrecimento das peças encenadas e zelavam pelo desinteresse do próprio público pelo teatro e autores portugueses.
Tendo escrito cerca de vinte peças, entre os anos de 1926 e 1936, algumas ainda permanecem inéditas, devido à instituição censura, que amedrontou o país e o afastou das grandes ideias e expressões culturais internacionais. Contudo, como refere a investigadora Maria Helena Serôdio, pior que a censura de certas partes do texto, era mesmo aquela que estava interiorizada “a ponto de constranger a própria criação ficional”. Razão, aliás, apontada como responsável pelo facto de os escritores neo-realistas, conscientes da importância que o teatro social tinha para a sua causa, não terem desenvolvido, particularmente, esta forma de expressão artística. (SERÔDIO, Maria Helena, “João Pedro de Andrade: alguns traços do seu universo dramático” in Vértice, nº 108, II série, 2002) (v. RODRIGUES, Graça Almeida, Breve História da censura literária em Portugal, Biblioteca Breve, ICLP, 1ª edição, 1980.)
A qualidade das suas peças, num período tão pobre de criação dramática, torna urgente publicar este autor e dá-lo a conhecer. Pois, como, já referia José Régio, em “Página Indiscreta-O Comediógrafo desconhecido”, artigo publicado na Presença, no ano de 1940, e que, aliás, foi escrito para chamar a atenção para “um autor ainda completamente desconhecido como dramaturgo” e que resulta do reconhecimento da sua importância para o teatro nacional, é, afinal, uma voz que procura garantir, dentro das suas próprias limitações, que a obra de João Pedro de Andrade não caia no olvido- panteão dos eternos desconhecidos e estigmatizados pela “natural censura” humana, aquela que garante a hegemonia de um gosto ou tendência estética sobre outras manifestações e pensamentos existentes. (RÉGIO, José, “Página Indiscreta- um comediógrafo desconhecido” in Presença, Tomo III, 2ª série, nº 2, 1940, pg.128/129).
O interesse que, desde muito cedo, João Pedro de Andrade demonstrou ter pelas Letras levou-o a construir um sólido conhecimento, que pôde explanar nas diversas colaborações que teve nos mais importantes periódicos nacionais da época: Sol Nascente, O Diabo, Seara Nova; Diário de Lisboa, Diário Popular e O Comércio do Porto. (V. DIAS, Luís Augusto Costa, A Imprensa Periódica na génese do neo-realismo, Museu do Neo-realismo, Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, 1996). Foi também tradutor, principalmente de obras francesas (Madame Bovary, de Flaubert...)
João Pedro de Andrade foi um autodidacta das Letras, um “dramaturgo desconhecido”, nas palavras de José Régio; um crítico e um dos mais importantes teóricos do neo-realismo. Será, então, sobre a multiplicidade da sua produção criativa que me debruçarei, em seguida.

João Pedro de Andrade: “um dramaturgo desconhecido”

A produção dramática de João Pedro de Andrade teve início, se assim se poderá dizer, em 1926 com a peça, ainda inédita, A Ave Branca, findando em 1963, com o manuscrito incompleto Um País Glorioso.
Ora, estamos perante cerca de trinta e sete anos de escrita dramática, pela mão da qual nasceram algumas das melhores peças dos últimos anos e que vieram, de facto, enriquecer o cenário teatral nacional, silenciado e enfraquecido por anos de censura e de estímulo a um “teatro alegre”, previsível e estagnado na escolas realista e naturalista.
Luiz Francisco Rebello que o coloca entre os dramaturgos “modernistas” e “vanguardistas”, marca, aliás, os anos de 1931 e de 1948, como balizas de um período que irão destacar-se na extensa produção de JPA. Em 1931, é escrita a peça Continuação da Comédia- o primeiro sinal da presença de Pirandello no teatro escrito português- de cariz modernista, na introdução do onírico, do irreal, mas também algo experimentalista, na opinião de Maria Helena Serôdio. Ao ser publicada em 1939 na revista "Presença", João Pedro de Andrade ganha um novo protagonismo no panorama teatral nacional. José Régio felicita-o em carta pela qualidade das suas peças. Diz, então, “João Pedro de Andrade é sem dúvida uma vocação de dramaturgo. O seu diálogo logo me surpreende (...) pela rara qualidade de não ser vulgar nem empolado (...)” (RÉGIO, José, “Carta” In João Pedro de Andrade A Inimiga dos Homens / Eva e sua Filha, Acontecimento, 2000) . E, em “Página Indiscreta- um Comediógrafo desconhecido”, José Régio assume publicamente o interesse e a importância deste escritor, dedicando-lhe um artigo na Presença: “naturalidade e qualidade literária do diálogo, finura de observação psicológica, segurança dos recursos técnicos, interesse dos motivos”.
Na História do Teatro Português, Luiz Francisco Rebello afirma a ligação de João Pedro de Andrade à geração da Presença, contudo, segundo o investigador “a obra de João Pedro de Andrade introduz na dramaturgia modernista uma nota de crítica social, que nunca é programática, e sim humano protesto contra as imperfeições do mundo” (pg. 111).
Por seu lado, Duarte Ivo Cruz, considera que o grande contributo deste dramaturgo está “na inovação e originalidade da sua obra”, mais do que na qualidade da mesma e destaca-a como uma “obra densa, rica, una apesar da variedade, constituída em torno de núcleos polarizantes.” (CRUZ, Duarte Ivo, Introdução à História do Teatro Português, Guimarães Editores, 1983). E o que entende por núcleos polarizantes?
Para este crítico, todas as peças deste dramaturgo são construídas e desenvolvidas a partir de um conflito dialectal: verdade-erro; bem-mal; positivo-negativo, que lhes confere a sua razão de ser. Partilhando esta mesma ideia, penso poder acrescentar que este “conflito dialectal” resulta de uma obra que procura testar a natureza humana, nos seus mais diferentes contextos, possibilidades, de onde resulta mostrar em palco cenários dúbios, respostas indefinidas e improváveis, e personagens em constante descoberta de si próprias, num mundo que se altera e flui.
E é do violento encontro, ou melhor, do convívio inesperado das personagens com a sua dupla realidade, que o conhecimento se processa, que as existências paradoxalmente se compatibilizam. Vêmo-lo, por exemplo, em A Inimiga dos Homens, quando a Morte parece conseguir provar ao Médico que a felicidade, a vida, a alegria e a própria continuidade e sentido da existência humana estão intimamente ligadas ao sofrimento, à perda. Na peça Maré Alta, o conflito, sempre gerador de mudança e factor de aprendizagem, dá-se entre o bem e o mal, entre o certo e o errado. E é, apenas, quando João e Filipe se apercebem do mal que estão a fazer a Ana, que toda a sua visão do mundo se altera: Ana tem o direito de decidir a sua vida, facto que até então não lhe era reconhecido. E, já, em Barro Humano procura destruir-se a noção de “casal ideal”, “ser humano perfeito”, “mulher e maridos ideais”. O sacrifício do carácter idealista na peça, reflecte a noção de que a felicidade humana é, de facto, uma necessidade e que apenas se compadece com uma vivência plena da natureza humana.
Apesar de contraditório e até, paradoxal, é a partir deste “conflito dialectal”, de que fala Duarte Ivo Cruz, que é permitido às personagens serem realmente livres e serem elas próprias, de onde resulta uma mensagem de tolerância, de encontro entre formas de viver incompatíveis, e de esperança da obra deste dramaturgo.
Maria Helena Seródio, no artigo publicado na revista Vértice vem acrescentar um “certo experimentalismo”, que não entra em contradição com um dos principais vectores da sua obra: a observação do humano, na suas contradições. É pela vida que a acção se decide. Ideia que se encontra implícita na carta de José Régio dirigida a João Pedro de Andrade: “um saber de experiências feito”. (Régio, José, “Carta”,in João Pedro de Andrade, A Inimiga dos Homens/ Eva e sua Filha, Acontecimento, 2000)
Mas dizia, outro dos grandes motivos da obra deste autor, aqui ainda não referido, e que a investigadora refere no seu artigo, “é a questão do feminino, que aflorando na Continuação da Comédia, acaba por percorrer quase toda a dramaturgia.”, e que o leva a interrogar “a fórmula dramática “tradicional”: o enquadramento da mulher/personagem deixou de reflectir o seu real papel na sociedade, “e esta preocupação [do dramaturgo] é, a meu ver, composicional e existencial”. E não é de admirar que haja um maior número de personagens femininas na obra de João Pedro de Andrade e que elas sejam as protagonistas de muitas das peças deste dramaturgo e das suas próprias vidas (Quatro Ventos; Maré Alta, Barro Humano, Eva e sua Filha; O Lobo e o Homem)
Tendo quase 40 anos de escrita dramática, aqui ficam todas as suas peças, cronologicamente apresentadas:

1926-27- A ave branca-inédita
1928-Cegos (I acto)
1929- A Outra face da vida (I acto) inédita
1931-Continuação da Comédia (I acto), publicada em 1939 na Presença
1930-33- Eva e sua filha (publicada em 2000)
1926-33- A Glória dos Césares (inédita)
1934- Transviados (3 actos) publicada em 1941
1935- Adolescente (I acto) inédita
1935-O saudoso extinto ( I acto) publicada em 1945
1937- Uma só vez na Vida (3 actos) publicada em 1941
1945- Quatro Ventos (3 actos)- publicada em 1998
1925-47- O Lobo e o Homem (3 actos) inédita
1947- Barro Humano (3 actos) publicada em 1999
1947- Maré Alta (I acto) publicada em 1998
1948- A Inimiga dos Homens (I acto) publicada em 2000
1950- O diabo e o frade (3 actos) publicada em 1963
1951- Os que hão-de vir (I acto) inédita
1951- A aventura de um grande actor (inédita)
1957- Vida transitória (manuscrito incomleto)
1963- Um país glorioso (manuscrito incompleto)

João Pedro de Andrade e o Neo-realismo

Ernesto Rodrigues, na introdução que faz a Ambições e Limites do Neo-realismo, o qual reúne os ensaios e os textos de JPA, dispersos por jornais e revistas, situa este escritor, no domínio da crítica como “imune a pressões do meio ou a ares do tempo”.
Originalidade e independência de ideias que se reflectem em toda a sua obra, pois se enquanto crítico estamos perante um dos grandes teóricos do neo-realismo português; quanto à restante produção criativa estamos perante um modernista, com fortes raízes na geração da Presença. O que, à partida, parecia incompatível, devido até às contradições e conflitos existentes entre os dois movimentos, torna-se em João Pedro de Andrade factor de originalidade.
Contudo, para que não se criem equívocos, há que esclarecer que numa primeira fase participaram na revista Presença poetas ligados à poesia social, mas também ao próprio neo-realismo, como são os nomes de Fernando Namora, João José Cochofel, Mário Dionísio, Joaquim Namorado entre outros. Convivência que se antagoniza por volta de 1935, com desentendimentos entre José Régio e uma nova geração de colaboradores.[1]
Carlos Reis em O Discurso Ideológico do Neo-realismo português reflecte sobre a autoridade de JPA no domínio da teorização, argumentando-a com base em duas razões:” em primeiro lugar, pelo facto de se tratar de um autor sempre dotado de um conhecimento muito actualizado da criação romanesca neo-realista, o qual se evidencia na regularidade da sua actividade crítica, ao longo da década de 40; em segundo lugar, porque, não podendo ser encarado como um autor directamente envolvido na produção literária neo-realista, João Pedro de Andrade constitui uma voz insuspeita para formular juízos sobre um movimento com que, no entanto, de um modo geral, se identificava”.
Defendendo João Pedro de Andrade uma ficção com fortes ligações ao mundo, considera que aos escritores, observadores privilegiados do “espectáculo do mundo”, cabe encarar a literatura como um “reflexo deformado” e uma “projecção ampliada” da realidade e nunca a própria realidade. Entende, que o escritor, tem como que uma “obrigação consciente e voluntária” de estar atento às grandes transformações do mundo, às convulsões sociais que se avizinham, às questões e dilemas internos que se levantam e de o transmitir através da sua sensibilidade: “Ora, quando um grande acontecimento se aproxima, quando uma guerra ou uma revolução se adivinha a distância, os pensamentos andam em sobressalto, os princípios da orgânica social estremecem na engrenagem que os suporta, conceitos morais que julgáramos eternos caem de caducos, e outros mais ousados se colocam em seu lugar. De tudo isto resulta uma modificação nos hábitos e uma tensão nos espíritos, que não podem passar despercebidas ao observador que todo o romancista tem de ser...” (ANDRADE, João Pedro, in Carlos Reis Textos teóricos do Neo-realismo Português, vol. 19, Comunicação, 1981.)
Consciente das grandes transformações que ocorriam no mundo, JPA reconhece a urgência em se criar “uma consciência nova”, assente numa sólida afirmação estética do movimento face às escolas e movimentos anteriores, e, para isso o neo-realismo não deverá apenas ficar pelos motivos que lhes são conhecidos: exposição das grandes desigualdades sociais: “Nem só a miséria ou as desigualdades sociais deverão fornecer motivos para a literatura neo-realista”. Pelo contrário, deve, sim e também, “descrever e criticar os quadros dos grupos superados, alicerçar em bases sólidas as aspirações de que a nova literatura será arauto” (O Diabo, 1940). Ou seja, o teórico João Pedro de Andrade afirma com estas palavras a necessidade do neo-realismo se afirmar como movimento oponente ao modernismo, mas assente numa estética própria e sólida e num programa que o garanta e o legitime.
Nas directrizes que João Pedro de Andrade procura traçar para o neo-realismo refere que “uma literatura social que se desenvolva normalmente afirma-se pela explanação serena dos problemas e das contradições sociais, progredindo no sentido de abranger e aprofundar mais tais problemas e contradições, que não estão apenas no campo económico”. Ora esta declaração parece-me ser relevante para o entendimento da sua obra e permite traçar as ligações que ela possa ter com o neo-realismo, ou não.
Como muito bem salientou Maria Helena Serôdio “a visão da mulher na nova dimensão existencial que João Pedro de Andrade lhe consigna é, para mim, um dos pólos estruturantes do seu universo ficcional”. Isto é, constata-se que, de facto, a problemática da mudança do papel social da mulher é uma temática constante e, se no teatro “tradicional” elas eram as aias, ou amas, as empregadas, ou a mulher casada subjugada às vontades de um mundo viril, com João Pedro de Andrade elas são o motor de mudança social, as suas protagonistas. Umas vezes em luta com os valores antigos e obsoletos de uma sociedade que as castra e estigmatiza, outras interrogando as possibilidade de realização como mulher que o mundo lhe apresenta, ela questiona e questiona-se, recusa, avança e recua, diz que sim e é caprichosa no seu direito a existir e a decidir o seu destino. Neste “conflito dialectal”, para usar uma expressão de Duarte Ivo Cruz, há o confronto entre o forte e fraco, o opressor e o oprimido, como se de uma luta de classes, que de facto o é, se tratasse: a mulher até então oprimida e enfraquecida enfrenta o homem de sempre e à sociedade que este criou à sua imagem e semelhança, ignorando que ela também deverá comportar uma dimensão feminina.
Recordo a personagem Elina d’A continuação da Comédia: “Elina é, de certo modo, a mulher, mas a mulher de hoje, que começa a penetrar-se na instrução que, assimilando mal os ensinamentos que recebe, sai da esfera de acção que lhe estava naturalmente traçada, e desvaira-se e delira. Cláudio é um homem, um homem que é assim, como podia ser de outro modo (...) Cláudio é de hoje, mas podia ser contemporâneo de Sócrates. Elina é essencialmente dos nossos dias” (ANDRADE, João Pedro de, A Continuação da Comédia, Acontecimento).
Perspectiva que se encontra em sintonia com outras peças da sua autoria, de que é exemplo Maré Alta. Ana quando escolhe um dos dois homens com quem ficar está a alterar a própria ordem das coisas, do mundo, e consegue, ela própria, transformar a forma de pensar dos dois personagens masculinos. A partir da sua decisão, que advém afinal do direito a decidir, o mundo assume novo sentido. O mesmo ocorre em Quatro Ventos ,que mais não são do que quatro possibilidades de vida que eram permitidas e previstas à mulher: casar; ficar solteira; ser amante; e viver sob os desígnios da família. Maria do Céu não acolhe na sua vida qualquer um destes ventos e decide ser ela a decidir a sua vida, porque agora, os ventos são de mudança.
E são elas que vão fazer a sua revolta, contra o homem e os seus valores obsoletos e velhos, tão velhos quanto o mundo e uma sociedade que as exclue. São elas que vão ser as grandes responsáveis pela maior transformação social que o mundo registou. É ao transformar-se o papel social da mulher, é a própria sociedade que se altera, porque elas vão ser as protagonistas de novos conceitos de família e de vivência familiar, de educação, de sexualidade feminina, de igualdade, fraternidade, até, então, estranhos no panorama nacional.
É, neste sentido, que falo de uma obra neo-realista. João Pedro de Andrade como observador privilegiado das grandes transformações sociais, a elas não ficou alheio transportando-as, subtilmente, para os palcos nacionais.



Bibliografia activa:

Teatro:
-Maré Alta/Quatro Ventos (Teatro Vol. I) (869.0-2 AND)

-Continuação da Comédia/ “Barro Humano” (Teatro Vol II) (prefácio de Luiz Francisco Rebello) (869.0-2 AND)

-A Inimiga dos Homens (Vol III) (Teatro Vol III) (ver carta de José Régio a JPA. Escreveu também na “Presença”) (869.0-2 AND)

-A glória dos Césares/O lobo e o homem (Teatro Vol. IV) (prefácio de Duarte Ivo Cruz) (869.0-2 AND)

Ensaio:

-Ambições e Limites do Neo-realismo português, Introdução de Ernesto Rodrigues e edição de Joana Marques de Almeida, ed. Acontecimento, Lisboa 2002.

-A Poesia da Novíssima Geração (génese de uma atitude poética), Porto, Latina Editora, 1943.

-“Arrumação duma ficha”. Seara Nova, Lx, nº 834, 7/8/43, e 836, 21/8/43. (polémica com Mário Dionísio)

-“Intenções e realizações da Presença na prosa de ficção”. O Comércio do Porto, Suplemento “Cultura e Arte”, 24/4/%&, Porto editora.

Antologia:
-ANDRADE, João Pedro de, Os melhores contos portugueses, Antologias Universais, Portugália editora, (869.0-3 MEL)

Colaborações:
ANDRADE, João Pedro de, “Neo-realismo” e “Novo Cancioneiro”, in Jacinto do Prado Coelho, Dicionário de Literatura Portuguesa, Galega e Brasileira, 3ª edição, Porto, Livraria Figueirinhas; 1973, 2º vol. (82 (030.DIC) I/II.

ANDRADE, João Pedro de, “Contingências da Poesia”, in Cadernos de Poesia, I série

ANDRADE, João Pedro de, “Continuação da Comédia”, in Presença, Contexto, Tomo III, 1993 (edição fac-similada).(consulta local-BMSC)

ANDRADE, João Pedro, “O problema do romance português contemporâneo”, in Seara Nova (1942).

[-ATENÇÂO:São conhecidas colaborações em diversos jornais e revistas, entre eles a revista Seara Nova, na década de 40; Diário de Lisboa, entre os anos de 1946 e 1947; Comércio do Porto; Diário Popular; e o semanário O Diabo, entre 1939 e 1940.]

Bibliografia passiva:

CRUZ, Duarte Ivo, “Prefácio”, in João Pedro de Andrade Teatro IV- A Glória dos Césares/O lobo e o Homem, Acontecimento, 2002. (869.0-2 AND)

CRUZ, Duarte Ivo, “João Pedro de Andrade” in Introdução à História do Teatro Português”, Guimarães editores, 1983 (792 (091)CRU)

DIAS, Raul, João Pedro de Andrade (algumas notas bio-bibliográficas e antológicas), Câmara Municipal de Ponte de Sôr, 1993

_________“Dicionário Cronológico de Autores Portugueses”, Vol IV, IPLB, Publicações Europa-América. (consulta local-BMSC)

FRANÇA, José Augusto, Antologia de Inéditos de autores portugueses contemporâneos, Lisboa, Fevereiro de 1955, pg. 51-60)

REBELLO, Luiz Francisco, “Prefacio”, in João Pereira de Andrade, Teatro II Continuação da Comédia/ Barro Humano, Lisboa, Acontecimento, 1999. (869.0-2 AND)

REBELLO, Luiz Francisco, 100 anos de teatro português, Porto: Brasília editora, 1984, p.40.

REBELLO, Luiz Francisco, História do Teatro Português, Publicações Europa-América, 1976. (792 (091) REB)

RÉGIO, José, “Carta a João Pedro de Andrade”, in João Pedro de Andrade, Teatro III- A inimiga dos Homens/ Eva e a sua filha, Acontecimento, 2000. (869.0-2 AND)

RÉGIO, José, “Duas peças de João Pedro de Andrade”, in João Pedro de Andrade, Teatro (I-Transviados; II- Uma só vez na vida), Lisboa, 1941, pg. 261.

RÉGIO, José, “Página Indiscreta-um comediógrafo desconhecido” in Presença, nº 2, série II, ano XII, Fevereiro de 1940. (consulta local)

REIS, Carlos, O discurso ideológico do neo-realismo português, Coimbra, Livraria Almedina, pág. 117

Idem, Textos teóricos do neo-realismo português, João Pedro de Andrade, (p. 178-175) e (207-212) (consulta local)

ROCHA, Clara, Revistas Literárias do Século XX em Portugal, 1985, p.474
SERÔDIO, Maria Helena ,“João Pedro de Andrade: Alguns traços do seu universo dramático”, in Vértice, II série, nº 108 Novembro-Dezembro de 2002. (secção revistas-BMSC)
1. Aliás, as discórdias de pontos de vista, estendem-se aos próprios elementos fundadores da revista Presença, que acabam por se afastar deste movimento, que cultiva a arte pela arte, alheada das grandes transformações do mundo. São eles, Miguel Torga, Branquinho da Fonseca.
Atacada pelo jornal Diabo e Sol Nascente e por toda a jovem geração que proclamava o primado do “indivíduo social” sobre o “subjectivismo” e “individualismo” dos presencistas, a revista Presença termina em 1940, um ano antes da publicação do Novo Cancioneiro, .como indica Clara Rocha em As revistas Modernistas –do Orpheu à Presença.

Melodia Interrompida, de Boris Pasternak

Há já muito que os acontecimentos caminhavam para uma nova ordem na ainda União Soviética. Às sucessivas derrotas do czarismo na guerra, alia-se a emergência de um novo pensamento, alicerçado em Marx, que traz aos ouvidos do mundo um novo discurso proferido na pluralidade da voz operária.
Com o novo pensamento é introduzida uma nova praxis, que se afirma na ruptura directa com o passado, com os ideias e modos de estar burgueses e que coloca o indivíduo perante novas possibilidades de resposta. Aos intelectuais, é-lhes pedida intervenção no acontecimento social e histórico, uma participação implicativa no real, através da criação de novas formas de manifestação artísticas. Entenda-se, não burguesas.
É neste contexto- eminência da guerra e a esperança numa nova ordem que se traduziria num novo homem- que o brilhante romance Melodia Interrompida se desenvolve. Sérgio Ossipovitch, jovem intelectual literato, chega a casa da irmã, em Ousolié, em 1916, cansado e desiludido do homem e das suas impossibilidades. O tempo era de guerra e os homens pareciam apenas saber falar dela. Sobre ela, apenas sabe dizer que é “a completa impossibilidade de imaginar a paz” (pg. 14). E nada mais saberemos do conflito que isto. E nada mais interessa saber, porque nele a protagonista é a paz e tudo o que ela permite imaginar, tendo como espaço o sonho do jovem intelectual a quem um dia foi dito que o mundo precisava do seu sonhar. Mas o tempo presente é outro.
Então numa extensa analepse, Sérgio regressa a Moscovo, ao ano de 1914, período em que trabalha como preceptor da família Fresnel e onde estabelece relações com diversas figuras femininas, ficando a conhecer a exploração e humilhação a que muitas delas são sujeitas, pelos homens, mas também pela sociedade: “O essencial .... é que em vez de se despirem, elas se vistam; o que mais conta é que, em vez de receber dinheiro, elas o dêem” (pg. 84). Ao tornar-se evidente a necessidade de mudança dos estado das coisas, Sérgio ambiciona “fazer” riqueza, partilhando-a, depois, com as mulheres. Mas atenção, uma riqueza que liberte e não que explore: “Fazê-la e não ganhá-la, bem entendido. O dinheiro ganho não é uma vitória e sem vitória não pode haver libertação” (pg. 84).
E como poderá Sérgio “fazer” riqueza, se as ideias são o seu labor e este a sua liberdade? O que a realidade nova pede ao intelectual é mais do que mera participação; pede-lhe que abdique da sua liberdade artística-, talvez o único contributo que poderia dar ao mundo- em prole do novo homem, de um pensamento que se afirma como novo humanismo, já não de liberdades individuais, mas de liberdades universais.
Mas o maior sonho de um anjo não é libertar o homem da sua condição, mesmo que tal signifique a alienação da sua própria liberdade, em função do bem comum? E Sérgio partilha esta vontade em erguer o novo homem, mais pleno na afirmação dos sonhos e mais universal na sua humanidade. Por isso, pensa publicar um drama em verso, repleto de imagens entendidas como “milagres do verbo, que é como quem diz: exemplos de uma submissão à Terra , total e rápida como a flecha. E, por consequência, são direcções que seguirá a sua moral de amanhã e o seu esforço no sentido da verdade” (pg. 121).
Deste esforço, Sérgio apenas nos deixou um esboço- quase realidade e quase verdade, não fosse a sua essência o sonho e a sua verdade humana-, que se apresenta como uma feliz parábola à condição do intelectual na Rússia pré-revolucionária, prenhe de expectativas, de sonhos e de possibilidades. Mas, ao longe, já se fazem ouvir os ecos da desilusão, o regresso à violência e à antiga ordem: “ (...) nestas violências que ecoam ao longe ele vê um regresso ao antigo estado de coisas, quando, afinal, esperava um renovo ainda desconhecido, isto é, total e irreversível.” (pg. 125/126).
Os homens, afinal, desconheciam outra linguagem que não fosse a da intolerância e o anjo, crente no sonho de reconstrução do novo homem abandona-o, desiludido. Sérgio acorda com os movimentos da casa. Está-se em 1916; o sonho esse é intemporal. E Outubro de 1917 está mais perto dos homens do que o novo humanismo.


Impossível, ainda, será ler este romance sem reconhecer nele o percurso do próprio autor. Por isso, mais difícil se torna não escrever algumas breves notas sobre este grande escritor da literatura universal. Boris Leonidovitch Pasternak nasceu em Moscovo em 1890 e morreu no dia 30 de Maio de 1960, em Peredelkino, na sua casa de campo. Escritor da grande e valorosíssima obra Doutor Jivago, é também autor de poemas “Minha Irmã, a Vida” (1922).
Apesar da difícil coexistência com o regime soviético, nem sempre a relação foi conflituosa. À semelhança dos seus protagonistas- Sérgio, preceptor em Melodia Interrompida e Iuri Jivago, médico e intelectual no romance Doutor Jivago-, o escritor no período pré-revolucionário também comungou dos ideais marxista. E, no seguimento desta comunhão escreve “Doença Grave”, livro de poemas e “O Ano de 1905”, de vertente mais histórica.
Com o estalinismo, o movimento atinge a plenitude da arbitrariedade, com perseguições, a que Pasternak não é poupado, principalmente porque Bukharine- herdeiro de ideias bolcheviques- o considerou um dos maiores expoentes das letras soviéticas, no I Congresso dos Escritores. Quase silenciado, sobrevive de traduções: Goethe, Shakespeare e outros
Votado à solidão por um regime que o apontava como inimigo e delator das verdades mais incontestáveis, esta é também a temática que mais se destaca na sua obra: a solidão do intelectual no processo violento da revolução e da história. No romance Melodia Interrompida este tema aparece já subtilmente esboçado, mas é no Doutor Jivago que atinge toda a sua plenitude e que será publicada em 1957, em Itália.
Em 1958 é-lhe atribuído o Prémio Nobel da Literatura, sendo impedido pelo regime de se deslocar a Moscovo, pois, segundo a “União dos Escritores”, o autor “interpretou levianamente a Revolução de Outubro de 1917, as pessoas que a realizaram e a construção social da URSS”.

Os sentidos da vida e da obra, em Natércia Freire

“Os Anjos são rijos como as pedras
E leves como as prumas.”[1]

Vitorino Nemésio, “Anjos”, in O Pão e a Culpa.


Os sentidos da vida e da obra, em Natércia Freire


As noções de vida e morte, mais do que desígnios de um princípio e fim, parecem ser frustradas tentativas para seriar e apaziguar toda a nossa angústia existencial. Mas nem as ondas sabem falar do mar e nem o mar ouve as ondas e, por isso, eis duas palavras que se entendem na pluralidade, pois plural é a voz dos povos, assim como plural é a voz do indivíduo.
A voz da poetisa Natércia Freire habita numa Casa e nessa Casa há anjos, há crianças que brincam desconhecendo a brincadeira, ali num Tempo anterior ao próprio nascimento (“As crianças permaneciam invioladas,/ Possuídas de secretas imagens/ E de tudo quanto foi antes do próprio nascimento”)[2], e à própria palavra (“Mas as crianças germinavam, mudas e sábias”)[3], onde se recolhem o sol, o mar, as cegonhas, o lago e os choupos. Um Tempo antes do tempo, onde a memória se universaliza (“As ordens recebidas num sol antigo”)[4] e nega as mortes prescritas pela distância que os homens colocam entre si ( “Mas a distância de cada dia, entre os homens, /Escurece-lhes a memória finita”)[5] e pela mentira que semeiam entre uns e outros (“Ao teu canto, ao teu riso/De ave do Paraíso,/Opuseram cegueiras”)[6].
E para melhor expressar esse Tempo Absoluto e fundamental que é a Infância, lembrem-se as palavras de Jacinto do Prado Coelho, escritas na “Introdução” à primeira edição de Poesias Escolhidas (1942-1952), com quem Natércia partilhou o tempo de estudos no Colégio Portugal - Brasil: a Infância nunca morre para sempre: perdura e vai-se transformando, nos recessos mais fundos da alma; o privilégio do Poeta é o milagre repetido da infância recuperada (...)[7]
Eis o nascimento da poeta, inscrito no movimento criativo inerente ao Cosmos. E se a voz do sujeito poético habita na Pátria do sonho, da memória, do infinito, da palavra poética, entendida como sentido original, o Cosmos não deixa de ser uma realidade em constante transição, que obriga o sujeito poético a viajar. Di-lo em “Logo que Nasci”, poema inserido na obra Liberdade Solar, de 1978:

Logo que nasci
Foi-me dada ordem
De me procurar.
Logo assim e aqui
Não vou ter descanso
Em nenhum lugar.[8]

Passageiro de si próprio e do mundo, viajante estacionado entre o Eu e os Outros, entre a distância e o ser, entre a memória finita e infinita, entre um Tempo Absoluto, que é o tempo em que habita o Poema e a efemeridade terrena, entre a vida e a morte e entre o dia e a noite, o sujeito poético tende ao apagamento de si próprio e ao desprendimento do mundo.
Sujeito ao devir, qualidade criativa do Cosmos e entidade geradora de sentido, o Eu como que se suspende nesse movimento entre o efémero e o etéreo. Ana Marques Gastão diz, a propósito, no ensaio publicado na revista “Phala”: Há, sempre, na poesia de Natércia Freire a noção de uma suspensão, de um movimento circular e ascendente sugerindo a procura de sentido para um sujeito que reflecte sobre a iminência da morte, num estado de “desprazer”, sim, mas também na certeza de uma “harmonia não visível”....[9] Nesse movimento ambíguo a que está sujeito o Eu, divinizado na figura do Anjo Branco, confundem-se e entrelaçam-se dois tempos: o da Infância, imortalizado no sonho e na memória e o da perda transitória da Infância, a que Jacinto do Prado Coelho apelida de o “enterro “ de si própria.

Em 1964, ao publicar Liberta em Pedra ouve-se o grito da plenitude humana. Ali, naquele corpo permanente, em que se transformou a palavra, a poesia existe e o poeta atinge a liberdade:

Liberta, liberta em pedra.
Até onde couber
Tudo o que é dor maior,
.........................................
Importa a liberdade
De não ceder à vida,
Um segundo sequer.

Ser de pedra por fora
E só por dentro ser[10].

Para João Gaspar Simões, esta obra é, acima de tudo, um protesto contra os limites da palavra poética, que nunca conseguirá exprimir a plenitude do ser humano[11]. Diz, então: Foi preciso que o poeta se “libertasse em pedra” para que a sua obra poética se mostrasse aquilo que de facto é na sua funda perspectiva: um protesto contra as próprias limitações da menos limitada das formas de expressão. Mas não será esse estado petrificado uma afirmação do perpetuar da memória e do superar das limitações temporais e existenciais? Não será o imperar da Infância, desse Tempo Absoluto, sobre o efémero presente? Isto é, o dar a conhecer aos povos a descoberta do Paraíso Perdido, onde a palavra, até então designação de impossibilidade, se afirma como, Casa, espaço/expressão de liberdade e de existência do Ser. O Eu, viajante, entre si e os outros, descobre a sua Pátria de origem: O Verbo.
Contudo, o Verbo, princípio do Cosmos e da Vida torna-se Pátria de estrangeiros, de gente exilada na sua própria Casa. É que o devir é natural da Vida, e Natércia Freire torna-se vítima do delírio nacional: a liberdade que tão bem soubemos conquistar, muitas vezes não soubemos utilizar, analfabetos do verdadeiro existir, aprenderemos com os nossos próprios erros o verdadeiro sentido da palavra liberdade.
E, assim, houve um dia em que o Anjo Branco foi expulso da sua Casa e ferido pela cegueira dos homens livres, refugia-se destes:

Fujo dos homens
Como os lobos fogem
E não me sinto lobo.

Escondo-me em fojos
Como os lobos fazem
E não me sinto lobo.

Ergo à Lua o meu uivo angustiado
E não me sinto lobo.

Os meus ouvidos outros
Ouvem queixas
De lobos espectrais.
E não me sinto lobo.

Alvejaram-me a tiro
Entre os olhos leais
E não me sinto lobo.

Se estoiro como o lobo
Que também tem um astro
Repercutindo ânsias solitárias
Terríveis e humildes
Em esferas mudas várias

Deito um rasto de sangue
Um visível pasto
A vampiros humanos.


E assim na morte vamos
Lobos, irmãos, iguais.[12]

O mar e o sol estão com a infância, e entre estes e o tempo presente ergueu-se uma eterna distância. O Anjo chora o “nosso chumbo, hora a hora”. Vidente dos sonhos, das estrelas, do sol e do mar, passageiro entre a sua adiada Pátria e o presente, eterna criança, a poetisa, só, entre os homens fala da morte, a sua- “A morte de calar”:

As viagens que sou prenderam-se em redomas
Ao corpo das palavras. À morte de calar.
...................................................................
Não tenho mais nada a escrever sobre as ondas
E, mesmo que tivesse, ninguém leria o Mar. [13]

Esperemos que o seu último livro Antologia Poética, publicado no ano que passou, seja um indício da nossa própria aprendizagem, para que não mais se silenciem aqueles que falam o Amor.

[1] Nemésio, Vitorino, “Anjos”, ( O Pão e a Culpa), in Obras Completas, vol. II, pg 217, INCM, 1989
[2] Freire, Natércia, “As crianças” ( Os Intrusos), in Antologia Poética, Assírio & Alvim, pg 93, 2001
[3] Idem, Ibidem
[4] Idem,Ibidem
[5] Idem, Ibidem
[6] Idem , “Nada Mais” ( Liberta em Pedra), in Antologia Poética, Assírio & Alvim, pg 69, 2001.
[7] Coelho, Jacinto Prado, “ Introdução” (à 1ª edição de Poesias Escolhidas), in Obra Poética, vol. I, INCM.
[8] Freire, Natércia, “Logo que nasci” ( Liberdade Solar) , in Antologia Poética, Assírio & Alvim, pg. 117
[9] Gastão, Ana Marques, “Antologia Poética”, in revista “ A Phala”, nº 90, Assírio & Alvim, Dezembro de 2001.
[10] Freire, Natércia,” Liberta em Pedra”, in Liberta em Pedra
[11] Simões, João Gaspar, “Liberta em Pedra” ( Crítica II), in Obra Poética, vol I, INCM, 1991
[12] Idem, “Como os lobos”, ( Liberdade Solar), in Antologia Poética, Assírio & Alvim , pg. 118, 2001.
[13] Idem, “ A morte de calar” ( Foi apenas Ontem), in Antologia Poética, Assírio & Alvim, p6, 123, 2001.

O silêncio das palavras

O silêncio das palavras

Talvez a mais sublime forma de expressão esteja no silêncio, onde nada se ouve porque nada se diz. Que sons terão as coisas sem as palavras para as chamarmos? E que nomes lhe dará o silêncio?
Em José Luis Peixoto, afirma-se uma poética que procura ruir um mundo tornado inexpressivo e inaudível pelo excesso de dizeres de chamamentos. “As palavras calaram-se dentro dos gritos”[1], como se o mundo tivesse perdido a capacidade de se expressar, nessa exaltante arbitrariedade do chamar por chamar, do chamar sem conhecer: a palavra desvincolou-se, há muito, do verdadeiro sentido das coisas e do mundo, instituindo em vez de libertar. Por isso, diz “ [o poema] não é a/ raiz de uma palavra que julgamos conhecer porque só podemos/ conhecer o que possuímos e não possuímos nada”. [2]
E aqui está o grande equívoco da torre de Babel: as palavras são grilhões que criámos entre as coisas e nós próprios e, deste modo, impusemos-lhe um sentido que é estranho à sua natureza, mas também à nossa: “ a palavra poema existe para não ser escrita como eu existo/ para não ser escrito ...”[3] Esta realidade, conduz, acima de tudo, a um novo escutar das coisas no mundo, a um deixar expressar de sentidos por si próprios, como se cada coisa tivesse a capacidade de contar a sua história, que não é a do homem, mas a sua: “há o silêncio circunscrito à tua volta/ e no entanto a tua pele é o silêncio”.[4]
O silêncio- tinta emprestada da terra, pele que com se veste a nudez do mundo, instrumento de sopro com que o sujeito poético produz o sentido do poema:

...............................................
Para que te conheça dá-me algum
Do silêncio que me dás para que
Nele te diga pele terra se de noite[5]

Natália Correia diz num poema que “o silêncio das palavras está onde nos esquecemos delas”, num tempo antes da memória, ou melhor, da consciência da memória, do nome das coisas. O poeta José Luis Peixoto situa na inocência da infância, o verdadeiro sentido da palavra poema: “o poema é quando eu não/conhecia a palavra poema, quando eu não conhecia a letra p e comia torradas feitas no lume da cozinha”.[6] Por isso, uma gota de água que pinga pinga não é uma gota de água é a gota que pinga pinga no quintal da minha infância, assim como a tua pele é também o silêncio circunscrito a si.
Ora, o que se nos apresenta não é a negação da possibilidade de escrita, mas sim uma rescrita das coisas pelo seu sentido:

pergunto se posso dizer o teu nome a uma flor
flor o teu nome sussurrado pétala a pétala
letra a letra uma flor desfolhada na terra[7]

A experiência que o sujeito poético tem das coisas levam-no a novas palavras na tentativa de expressar o seu sentido, por isso, a flor deixou de ser uma flor para passar a ter o teu nome, com que te chamo e digo esta flor. Mas neste “emprestar” de nomes há também duas naturezas que se transformam: a flor e “tu”, porque o nome passou a traduzir sentidos, que pareciam antagónicos, e não coisas.
Diz em Arte Poética “eu, eu só sei escrever o seu sentido”.[8] É apenas este o conhecimento do poeta, sentir o sentido prescrito nas coisas:

eu sou um homem vivo a sentir cada pedra,
eu sou um homem vivo a sentir cada montanha
eu sou um homem vivo a sentir cada grão de areia.
desordenadamente, eu sou alguém que é eu sem o saber[9]

É este o destino do poeta, dormir nas costas do mundo e chamar-lhe cama, senti-lo passar nas mãos e sentir apenas isto, uma vida feita de mortes, a sua e a do outro, emprestar-lhe a sua caligrafia e navegar sem sentido num “oceano infinito”, até ao dia em que “tudo será arrumado...”:

Os segredos serão organizados nas indeléveis palavras.
As aves de outrora existirão nas folhas paginadas,
na pele e nos planaltos
as aves, os pombos, as cegonhas, planarão
dentro da terra e da cinza dos arquivos.

o pó será organizado um dia.
cada homem será uma chama nas estantes das bibliotecas.
.........................................................................
um dia, depois de mim,
estes versos serão ossos
mudos e incompreensíveis.
as flores sufocarão no ar que respirei.
as flores crescer-me-ão do peito.[10]

Assim se escreve o livro do mundo, por palavras que aproximam, por palavras que não são palavras, mas flor mar luz o teu nome emprestado a todos eles e “eu”, que sinto todas estas coisas não tenho nome e sou todos os nomes.
[1] Peixoto, José Luis, “ A morte é esta caneta que não é os meus dedos”, pg. 26, Quasi
[2] op.cit, “Arte Poética”, pg. 8
[3]Ibidem
[4]Ibidem, 18
[5]op.cit 71
[6]op.cit, pg. 9
[7]op.cit. 61
[8]op.cit. og. 9
[9] op.cit. pg 41/42
[10]op.cit pg.29
Desloco-me para uma página em branco e algo deixou de ser. Escrevo linhas atrás de linhas palavras domesticadas por pontos finais que nada interrompem. Risco apago e volto a dizer palavras outras afluentes ao mesmo rio. Construo canais e procuro apoderar-me do sentido das coisas, alterar-lhes o rumo e o fim inevitável de tudo. E penso: será que o significado de tudo isto está no silêncio? Então, ceifo verdades dispostas na finita extensão da frase e empilho-as à margem. Escuto e nada oiço olho e já nem sei onde fica o horizonte. Apenas existo eu e a brancura desta página. Penso: será que é possível existir sem dizer? Insisto. Vivo em silêncio. Procuro ouvir o mar antes deste ser mar, sentir a brisa que passa e não sentir nada mais e esqueço-me. Já nada é.
O meu mundo é todo o mundo. O meu mundo é uma mão aberta com quase tudo. No meu mundo não há mundo há um balão com sopro de gente e que me foge das mãos. No meu mundo há melodias de gotas a cair dos canteiros de minha casa, há lágrimas que tocam o chão. no meu mundo há o teu mundo que levas dentro desse saco arrastado a cada passo. No meu mundo não há gente há um mar que me acolhe e que me conta histórias que eu não sei falar. no meu mundo há uma cigarra no pasto e duas crianças a saltitar no meu mundo há o cheiro a eternidade um eterno acabar. No meu mundo há o encontro eu tu e todos os outros no aroma do luar.
O céu parece estar cada vez mais alto. Tão alto que nos tocamos na distância da palavra, tão perto apenas estou do silêncio. As palavras procuram-me para lhes dar sentido. O mar e eu um dia escreveremos a nossa história. Encostei a cabeça à barriga prenhe do mundo e ouvi-lhe os miados. sou também a ninhada de restos por vir. Dizem-me segredos ao ouvido. Pedem-me que os escute. Não os digo. Como dizer segredos confiados ao ouvido? e, no entanto, as palavras falam comigo dizem-me que diga vida como quem diz ninhada que diga deus em vez de céu e que lhes confie os segredos de tudo isto.
Canso-me de ouvir chover palavras que não digo. Daqui tudo é miragem. O que vejo é outro sentir.
Eu não sou eu e tu.

Deus é todos os outros.

A vida é um facto contestável
e a morte um facto inevitável.

Tu és tu
porque eu sou eu.
E eu sou tu
quando tu és eu.
O nada é um quase tudo
e o tudo um quase nada.

O quase é
um eu que pensa
em tu.
é a vida pensada.

A certeza é um axioma sem retorno.
e a dúvida um eterno consolo.

Deus duvida do eu
assim como eu duvido do outro.

A dor é
um canto
sem ninho.
O amor é
um ninho
sem canto.

O que se procura não se encontra.

Apenas se encontra o que se conhece.

O eu procura-se no outro.

O outro procura-se no eu.

Apenas o eu se encontra em si

Apenas o outro se encontra no outro.

Deus
é uma eterna busca do eu
por si próprio.

O eu
é um eterno desvio do outro.

O eu sou eu a chamar-me.

Apenas eu
me chamo eu.

O outro sou eu
a chamá-lo ou
ele a chamar
o meu eu de outro.

Eu sou a primeira pessoa do singular
tu és a terceira de uma forma verbal.

O que existe não se diz. O que se escreve não existe.

Apenas eu
existo quando eu me digo


e tu existes quando eu te digo.

O mundo és tu dentro da minha cabeça.

E eu sou tu dentro da tua cabeça.

Eu e tu não existimos.

Ausência

Hoje partilhámos o mar. Ali, onde tantas vezes procurei por ti e nunca te encontrei, estavas tu. Já não esperas por mim. Estás cansado. Eu canso-te. O meu amor entristece-te e tu continuas a procurar-me na nossa praia. Haverá alegria maior do que ser amada por ti? Mas haverá tristeza maior do que saber que o meu amor te entristece? Obrigada, meu amor, por não me deixares só na praia. É que sabes, não consigo mais procurar sentido no horizonte, e até a beleza das estrelas e a doçura das ondas me desiludiram. Desculpa, trazer-te para um lugar tão triste e tão feio. Tira-me daqui e leva-me contigo; haverá amor mais egoísta do que o meu pelo mar.
Os gatos subiram ao telhado
Tudo está mais próximo
Da oração.

Os gatos arranham os telhados
Para que a gente acorde.

Os gatos já não sonham ser gatos
São um pouco de gente e de fel,
Os gatos aprenderam a não querer ser gente.
Pode a vontade tornar um ser naquilo que ele não é?
Pode o sonho criar um ser?

Os gatos que já não são gatos e que não querem ser gente oram no cimo dos telhados para a gente acorde.

Há na vida uma oração que todos os seres partilham
Oiçamos as feras.

Adormecer

Enrolo-me na vida como a onda sobre o mar, e assim como as ondas perecem na sua calma assim me desvaneço na força eterna do ser. Possa eu compreender, um dia, porque morrem as ondas no mar, assim eu entenda porque há vontades que dão com o meu corpo à costa, leve no cair das ondas e pesado no sono eterno, frágil na decomposição de cantos de mim mesma que amei, que escondi e que ignorei; e efémero, eternamente efémero e frágil, eternamente isto.

quinta-feira, 20 de março de 2008

O lado humano

O frio. Um corpo adormecido no cimo da montanha. O mar chama por si. O frio seco na fronte , nos braços que se acolhem, o frio nos ossos, a pele seca pelo frio. Mas a onda beija-lhe os pés. Sempre o mar.

quarta-feira, 19 de março de 2008

Existir


ATCHIMAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAPUMA
AAIAAA
ÃAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA

AAIAAAA
EAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAIAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAA

AAAAIAAAAAAAAAAAAAAAAAAAMORAAAAAAAAA
AAAAAIAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAATAAAAAAAA
AAAAAAIAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAEAAAAAAA
AAAAAAAIAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA

AAAAAAAAIAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAI
ADEUSAAEAABUSAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAIA
ÁAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAIAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAIAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AL
MAAAAAAAAAAAAIAAAAAAAAAAAAÉAOAFIMAAA

sexta-feira, 14 de março de 2008

-----------------------------JJ
----------------------------AJR
---------------------------DJJM
----------------------------EM
------------------------LLLFFLLLLL
---------------------LLLLL OOLLLLL
-----------------------RRR JJ RRR
---------------------------AJR
--------------------------DJJM
--------------------------- EM

Espaço

Caminho sobre direcção incerta. O imenso diz-me que cheguei.

O Criador de Ilusões

Estava um dia como são todos os dias, no cimo de um monte pleno de imensa distância. Só eu e o caminho a percorrer. Eu e o monte, eu e a distância eu e os dias sempre iguais. Passa uma brisa sobre a minha tez, de brancura pouco cândida, mas gasta da brisa por ela sempre passar. O que fica realmente, de tudo o que passa por nós, sobre nós e para nós? O teu beijo que me alcançou...não há brisa, sonho, palavra que o destrua. Aqui sou eu.