sexta-feira, 21 de março de 2008

Notas introdutórias- uma possível leitura da poesia de Manuel da Fonseca



O Largo- entre o Sonho e Real

A casa do poeta, por tantos e tantas vezes cantada, é um motivo que não poucas vezes se vê tratado na literatura de que não é excepção o neo-realismo.
Ora, a jovem geração neo-realista que nos anos trinta desafiava os academistas modernistas, defensores de uma arte pura, individual e alheada do mundo, vem defender um novo humanismo, protagonizado por um “novo homem” e uma “nova mulher”, que fraternalmente e apenas deste modo iriam revolucionar o mundo e a sua história ao lutarem pela “felicidade universal” onde a arte aparecia intimamente ligada à Ideologia.
É com base neste ponto (Arte e Ideologia) que Eduardo Lourenço constrói o sentido de liberdade que se vive na “casa neo-realista”. Diz, então, no prólogo ao livro Sentido e forma na poesia neo-realista : “Mesmo que se admita que a Ideologia comporta consequências que colidem com uma concepção mais bem fundada da liberdade espiritual, o simples facto de ela ter sido eleita por aqueles que ninguém obriga a perfilhá-la os tornaria livres. Uma prisão que nós escolhemos por essa escolha se torna a nossa casa.” Se para muitos é discutível a liberdade criativa de uma arte onde o sentido estético tem por orientação uma Ideologia, para Eduardo Lourenço tal não é motivo de grande discussão, aliás, torna-se característico da liberdade criativa e espiritual desta geração e casa da próprio artista. Mais adiante diz «e essa “casa habitável” que o neo-realismo adoptou, defendeu e escolheu, mais não é do que um “sonho recusado” e um “mito incarnado algures”».
Manuel da Fonseca, escritor santiaguense e figura singular na escrita neo-realista, encontra na imagem do “Largo” a metáfora do Sonho neo-realista de que Eduardo Lourenço falava, “mito incarnado” na infância perdida, onde as crianças jogam ao pião ou descobrem através de um “vidro extraordinário” “as sete cores do arco-íris!” (“Primeiro”), onde as raparigas passam e o poeta se fascina com o mistério “sobre os peitos debaixo das blusas” (“Segundo”), ou, então, a partir da qual se desafia o poder instituído ao atirar “uma pedrada tão certeira/ que levou o chapéu do Senhor Administrador” (“Segundo”) e se aprende ouvindo as estórias dos mais velhos (“ E nós sentados no chão. /Cansados./Dizia o avô:- quando eu era novo.../E o avô era novo/ e tinha um cavalo que corria, corria...).
O “Largo” é a casa onde habita a escrita do Poeta, as suas personagens, e uma ideia de um Alentejo fértil, rico e frutuoso, eterno e universal concretizando o Sonho de um “novo homem”. É um espaço de encontro dos homens , e onde as crianças aprendem a ser gente.
E quem nunca desceu ao Largo, quem nunca nele brincou ao pião ou se excitou com as raparigas casadoiras que passavam, ou ousou desafiar os poderes instituídos que ali passavam?
Então, é um canto triste e desolador que se escuta na voz do Poeta. Escutêmo-la no poema “Tragédia” :

“Foi para a escola e aprendeu a ler
e as quatro operações, de cor e salteado.
Era um menino triste:
Nunca brincou no largo
Depois foi para a loja e pôs a uso
aquilo que aprendeu
-vagaroso e sério,
sem um engano,
sem um sorriso.
Depois, o pai morreu
Como estava previsto.
E o Senhor António
(tão novinho e já era “O Senho António”!...)
ficou dono da loja e chefe da família...
Envelheceu, casou, teve meninos,
Tudo como quem soma ou faz multiplicação!...
E quando o mais velhinho
Já sabia contar, ler, escrever,
O Senhor António deu balanço à vida:
Tinha setenta anos, um nome respeitado...
-que mais podia querer?
Por isso,
Num meio-dia de Verão,
Sentiu-se mal.
Decentemente abriu os braços
E disse: - Vou morrer.
E morreu!., morreu de congestão!...


Quem nunca desceu ao Largo nunca foi livre, nunca foi feliz porque nunca soube ser homem. Mas esse espaço eternizado, que era sinónimo de liberdade e de plenitude humana e de universalidade torna-se um espaço marginal, circunscrito às memórias do poeta e à nostalgia de uma infância perdida:

“Quando eu era menino...
Ah, só agora penso que fui menino
E o que isso é maravilhoso ter-se sido!
Mas este livro é impossível ler-se
Nem uma linha sequer...”

Um espaço pessoal e particular “impossível ler-se/ Nem uma linha sequer...”, di-lo no poema “Manhã de Maio”, que não encontra sentido ou equivalência no plano real. E é ao firmar raízes nas vivências e experiências particulares do Alentejo, nas personagens e suas vivências que a escrita neo-realista de Manuel da Fonseca se limita e impossibilita enquanto tal, caindo num canto choroso e desolador de mágoas e nostalgias por uma “infância perdida” e nunca mais recuperada. Perde-se o sentido universal que encontramos nos primeiros poemas de Rosa dos Ventos e passamos a conviver com um poeta em fuga eterna do Real para o Sonho:

“Na noite calada e quieta como um grande segredo,
andando ao deus-dará nestas ruas desertas,
saio lá do fundo do meu sonho
e olho ao redor de mim.

Cá fora há tudo o que não é do meu sonho:
O frio, e os altos prédios fechados,
E as ruas mortas como paisagem de cemitérios.
...............................................................”





E se inicialmente temos um sujeito poético que num canto universal diz em As setes canções da Vida

“abarco a Vida toda
e parto
para os longes mais longes das distâncias mais longas
...................................................
Grito e estremeço
Perdido o sentido das pátrias
E a cor das raças,
Livre para todos os caminhos dos homens!”

Na “Canção do Maltês”, deparamo-nos com uma interiorização da caminhada e uma marginalização da figura do poeta, na personagem do maltês, do vagabundo, em relação às suas gentes. O “moço do interior”, farol das gentes perdidas no mar, metáfora do próprio poeta, que tinha como missão guiar a multidão anónima pelo caminho da felicidade colectiva, dá lugar a uma personagem em fuga, errante pelos caminhos do mundo, que “leva o Sol na algibeira”, preso ao seu Sonho, à sua infância e à sua nostalgia:

“Bati à porta do monte
porque sou um deserdado
..........................................
Despedi-me até mais ver
Que a gente da minha raça
Mal o Sol tenta nascer
Ergue-se e parte pelo mundo
Sem se lembrar de ninguém”

Deparamo-nos, então, com as palavras de Eduardo Lourenço: “na poesia neo-realista a Ideologia revelar-se-á menos como sujeito de inspiração do que quadro”, verificando-se, afinal, “a existência da predominância da temática romântica: o conflito entre o Sonho e o Real.”

A Vida- o caminho da Utopia

Rosa dos Ventos é o primeiro livro publicado com a ajuda de amigos, em 1940, que segundo Alexandre Pinheiro Torres contém “alguns dos poemas formalmente mais belos deste século” e que vêm solidificar um movimento que há já muito anunciava um novo humanismo, trazendo uma “ reviravolta temática na poesia portuguesa”.
Nele, espraiam-se, desde início, os grandes motivos e temáticas que irão orientar a sua poesia. A primeira parte, “Sete canções da vida”, abre com o belíssimo poema “Primeira”, onde se canta a Vida, na metáfora da mulher sedutora e sensual, de contornos clássicos, uma Vénus inspiradora dos poetas renascentistas (sonhada, mas inalcansável), que no século XX serve de inspiração ao Poeta neo-realista que sonha com o amor fraterno- a União entre povos.

“Vida: sensualíssima mulher de carnes maravilhosas
cujos passos são horas.
.........................................
Vou seguindo teus passos
Lutando e sofrendo
E ficam abertos meus braços:
Nunca te alcanço!”

O sujeito poético afirma, assim, a natureza clássica da mulher, divina, utópica, ideal, mas repare-se que falamos da Vida associada à luta e à revolta, à acção, portanto, é de todo um sonho para a Humanidade que o Poeta fala, se bem que ainda não está declarada a fraternidade do seu Sonho. O registo poético encontra-se, apenas, no plano pessoal:

“À punhalada dilacero a folhagem
e abro clareiras
na floresta milenária do meu caminho.”

A afirmação do cenário idílico segue no poema “Segunda”, onde são claras as referências à famosa alegoria da “Ilha dos Amores”, da epopeia Os Lusíadas, de Camões. A união entre o poeta e a musa (rapariga casta) é perfeita, a Eternidade foi alcançada:


“-Bom dia, Sol de todos os países!
Os nossos corpos formaram laços,
A Eternidade envolve-nos.”

E o sujeito poético interpela agora os seus irmãos:

“-por que não vamos colher os frutos que semeámos?
Por que não vamos, irmãos, por que não vamos?!
Interpelação dos homens, massas anónimas que “cruzaram caminhos, devassaram florestas, escalaram montanhas” e que, agora, o poeta procura orientar para projectos maiores, a felicidade social

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