sexta-feira, 21 de março de 2008

Melodia Interrompida, de Boris Pasternak

Há já muito que os acontecimentos caminhavam para uma nova ordem na ainda União Soviética. Às sucessivas derrotas do czarismo na guerra, alia-se a emergência de um novo pensamento, alicerçado em Marx, que traz aos ouvidos do mundo um novo discurso proferido na pluralidade da voz operária.
Com o novo pensamento é introduzida uma nova praxis, que se afirma na ruptura directa com o passado, com os ideias e modos de estar burgueses e que coloca o indivíduo perante novas possibilidades de resposta. Aos intelectuais, é-lhes pedida intervenção no acontecimento social e histórico, uma participação implicativa no real, através da criação de novas formas de manifestação artísticas. Entenda-se, não burguesas.
É neste contexto- eminência da guerra e a esperança numa nova ordem que se traduziria num novo homem- que o brilhante romance Melodia Interrompida se desenvolve. Sérgio Ossipovitch, jovem intelectual literato, chega a casa da irmã, em Ousolié, em 1916, cansado e desiludido do homem e das suas impossibilidades. O tempo era de guerra e os homens pareciam apenas saber falar dela. Sobre ela, apenas sabe dizer que é “a completa impossibilidade de imaginar a paz” (pg. 14). E nada mais saberemos do conflito que isto. E nada mais interessa saber, porque nele a protagonista é a paz e tudo o que ela permite imaginar, tendo como espaço o sonho do jovem intelectual a quem um dia foi dito que o mundo precisava do seu sonhar. Mas o tempo presente é outro.
Então numa extensa analepse, Sérgio regressa a Moscovo, ao ano de 1914, período em que trabalha como preceptor da família Fresnel e onde estabelece relações com diversas figuras femininas, ficando a conhecer a exploração e humilhação a que muitas delas são sujeitas, pelos homens, mas também pela sociedade: “O essencial .... é que em vez de se despirem, elas se vistam; o que mais conta é que, em vez de receber dinheiro, elas o dêem” (pg. 84). Ao tornar-se evidente a necessidade de mudança dos estado das coisas, Sérgio ambiciona “fazer” riqueza, partilhando-a, depois, com as mulheres. Mas atenção, uma riqueza que liberte e não que explore: “Fazê-la e não ganhá-la, bem entendido. O dinheiro ganho não é uma vitória e sem vitória não pode haver libertação” (pg. 84).
E como poderá Sérgio “fazer” riqueza, se as ideias são o seu labor e este a sua liberdade? O que a realidade nova pede ao intelectual é mais do que mera participação; pede-lhe que abdique da sua liberdade artística-, talvez o único contributo que poderia dar ao mundo- em prole do novo homem, de um pensamento que se afirma como novo humanismo, já não de liberdades individuais, mas de liberdades universais.
Mas o maior sonho de um anjo não é libertar o homem da sua condição, mesmo que tal signifique a alienação da sua própria liberdade, em função do bem comum? E Sérgio partilha esta vontade em erguer o novo homem, mais pleno na afirmação dos sonhos e mais universal na sua humanidade. Por isso, pensa publicar um drama em verso, repleto de imagens entendidas como “milagres do verbo, que é como quem diz: exemplos de uma submissão à Terra , total e rápida como a flecha. E, por consequência, são direcções que seguirá a sua moral de amanhã e o seu esforço no sentido da verdade” (pg. 121).
Deste esforço, Sérgio apenas nos deixou um esboço- quase realidade e quase verdade, não fosse a sua essência o sonho e a sua verdade humana-, que se apresenta como uma feliz parábola à condição do intelectual na Rússia pré-revolucionária, prenhe de expectativas, de sonhos e de possibilidades. Mas, ao longe, já se fazem ouvir os ecos da desilusão, o regresso à violência e à antiga ordem: “ (...) nestas violências que ecoam ao longe ele vê um regresso ao antigo estado de coisas, quando, afinal, esperava um renovo ainda desconhecido, isto é, total e irreversível.” (pg. 125/126).
Os homens, afinal, desconheciam outra linguagem que não fosse a da intolerância e o anjo, crente no sonho de reconstrução do novo homem abandona-o, desiludido. Sérgio acorda com os movimentos da casa. Está-se em 1916; o sonho esse é intemporal. E Outubro de 1917 está mais perto dos homens do que o novo humanismo.


Impossível, ainda, será ler este romance sem reconhecer nele o percurso do próprio autor. Por isso, mais difícil se torna não escrever algumas breves notas sobre este grande escritor da literatura universal. Boris Leonidovitch Pasternak nasceu em Moscovo em 1890 e morreu no dia 30 de Maio de 1960, em Peredelkino, na sua casa de campo. Escritor da grande e valorosíssima obra Doutor Jivago, é também autor de poemas “Minha Irmã, a Vida” (1922).
Apesar da difícil coexistência com o regime soviético, nem sempre a relação foi conflituosa. À semelhança dos seus protagonistas- Sérgio, preceptor em Melodia Interrompida e Iuri Jivago, médico e intelectual no romance Doutor Jivago-, o escritor no período pré-revolucionário também comungou dos ideais marxista. E, no seguimento desta comunhão escreve “Doença Grave”, livro de poemas e “O Ano de 1905”, de vertente mais histórica.
Com o estalinismo, o movimento atinge a plenitude da arbitrariedade, com perseguições, a que Pasternak não é poupado, principalmente porque Bukharine- herdeiro de ideias bolcheviques- o considerou um dos maiores expoentes das letras soviéticas, no I Congresso dos Escritores. Quase silenciado, sobrevive de traduções: Goethe, Shakespeare e outros
Votado à solidão por um regime que o apontava como inimigo e delator das verdades mais incontestáveis, esta é também a temática que mais se destaca na sua obra: a solidão do intelectual no processo violento da revolução e da história. No romance Melodia Interrompida este tema aparece já subtilmente esboçado, mas é no Doutor Jivago que atinge toda a sua plenitude e que será publicada em 1957, em Itália.
Em 1958 é-lhe atribuído o Prémio Nobel da Literatura, sendo impedido pelo regime de se deslocar a Moscovo, pois, segundo a “União dos Escritores”, o autor “interpretou levianamente a Revolução de Outubro de 1917, as pessoas que a realizaram e a construção social da URSS”.

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