Há já muito que os acontecimentos caminhavam para uma nova ordem na ainda União Soviética. Às sucessivas derrotas do czarismo na guerra, alia-se a emergência de um novo pensamento, alicerçado em Marx, que traz aos ouvidos do mundo um novo discurso proferido na pluralidade da voz operária.
Com o novo pensamento é introduzida uma nova praxis, que se afirma na ruptura directa com o passado, com os ideias e modos de estar burgueses e que coloca o indivíduo perante novas possibilidades de resposta. Aos intelectuais, é-lhes pedida intervenção no acontecimento social e histórico, uma participação implicativa no real, através da criação de novas formas de manifestação artísticas. Entenda-se, não burguesas.
É neste contexto- eminência da guerra e a esperança numa nova ordem que se traduziria num novo homem- que o brilhante romance Melodia Interrompida se desenvolve. Sérgio Ossipovitch, jovem intelectual literato, chega a casa da irmã, em Ousolié, em 1916, cansado e desiludido do homem e das suas impossibilidades. O tempo era de guerra e os homens pareciam apenas saber falar dela. Sobre ela, apenas sabe dizer que é “a completa impossibilidade de imaginar a paz” (pg. 14). E nada mais saberemos do conflito que isto. E nada mais interessa saber, porque nele a protagonista é a paz e tudo o que ela permite imaginar, tendo como espaço o sonho do jovem intelectual a quem um dia foi dito que o mundo precisava do seu sonhar. Mas o tempo presente é outro.
Então numa extensa analepse, Sérgio regressa a Moscovo, ao ano de 1914, período em que trabalha como preceptor da família Fresnel e onde estabelece relações com diversas figuras femininas, ficando a conhecer a exploração e humilhação a que muitas delas são sujeitas, pelos homens, mas também pela sociedade: “O essencial .... é que em vez de se despirem, elas se vistam; o que mais conta é que, em vez de receber dinheiro, elas o dêem” (pg. 84). Ao tornar-se evidente a necessidade de mudança dos estado das coisas, Sérgio ambiciona “fazer” riqueza, partilhando-a, depois, com as mulheres. Mas atenção, uma riqueza que liberte e não que explore: “Fazê-la e não ganhá-la, bem entendido. O dinheiro ganho não é uma vitória e sem vitória não pode haver libertação” (pg. 84).
E como poderá Sérgio “fazer” riqueza, se as ideias são o seu labor e este a sua liberdade? O que a realidade nova pede ao intelectual é mais do que mera participação; pede-lhe que abdique da sua liberdade artística-, talvez o único contributo que poderia dar ao mundo- em prole do novo homem, de um pensamento que se afirma como novo humanismo, já não de liberdades individuais, mas de liberdades universais.
Mas o maior sonho de um anjo não é libertar o homem da sua condição, mesmo que tal signifique a alienação da sua própria liberdade, em função do bem comum? E Sérgio partilha esta vontade em erguer o novo homem, mais pleno na afirmação dos sonhos e mais universal na sua humanidade. Por isso, pensa publicar um drama em verso, repleto de imagens entendidas como “milagres do verbo, que é como quem diz: exemplos de uma submissão à Terra , total e rápida como a flecha. E, por consequência, são direcções que seguirá a sua moral de amanhã e o seu esforço no sentido da verdade” (pg. 121).
Deste esforço, Sérgio apenas nos deixou um esboço- quase realidade e quase verdade, não fosse a sua essência o sonho e a sua verdade humana-, que se apresenta como uma feliz parábola à condição do intelectual na Rússia pré-revolucionária, prenhe de expectativas, de sonhos e de possibilidades. Mas, ao longe, já se fazem ouvir os ecos da desilusão, o regresso à violência e à antiga ordem: “ (...) nestas violências que ecoam ao longe ele vê um regresso ao antigo estado de coisas, quando, afinal, esperava um renovo ainda desconhecido, isto é, total e irreversível.” (pg. 125/126).
Os homens, afinal, desconheciam outra linguagem que não fosse a da intolerância e o anjo, crente no sonho de reconstrução do novo homem abandona-o, desiludido. Sérgio acorda com os movimentos da casa. Está-se em 1916; o sonho esse é intemporal. E Outubro de 1917 está mais perto dos homens do que o novo humanismo.
Impossível, ainda, será ler este romance sem reconhecer nele o percurso do próprio autor. Por isso, mais difícil se torna não escrever algumas breves notas sobre este grande escritor da literatura universal. Boris Leonidovitch Pasternak nasceu em Moscovo em 1890 e morreu no dia 30 de Maio de 1960, em Peredelkino, na sua casa de campo. Escritor da grande e valorosíssima obra Doutor Jivago, é também autor de poemas “Minha Irmã, a Vida” (1922).
Apesar da difícil coexistência com o regime soviético, nem sempre a relação foi conflituosa. À semelhança dos seus protagonistas- Sérgio, preceptor em Melodia Interrompida e Iuri Jivago, médico e intelectual no romance Doutor Jivago-, o escritor no período pré-revolucionário também comungou dos ideais marxista. E, no seguimento desta comunhão escreve “Doença Grave”, livro de poemas e “O Ano de 1905”, de vertente mais histórica.
Com o estalinismo, o movimento atinge a plenitude da arbitrariedade, com perseguições, a que Pasternak não é poupado, principalmente porque Bukharine- herdeiro de ideias bolcheviques- o considerou um dos maiores expoentes das letras soviéticas, no I Congresso dos Escritores. Quase silenciado, sobrevive de traduções: Goethe, Shakespeare e outros
Votado à solidão por um regime que o apontava como inimigo e delator das verdades mais incontestáveis, esta é também a temática que mais se destaca na sua obra: a solidão do intelectual no processo violento da revolução e da história. No romance Melodia Interrompida este tema aparece já subtilmente esboçado, mas é no Doutor Jivago que atinge toda a sua plenitude e que será publicada em 1957, em Itália.
Em 1958 é-lhe atribuído o Prémio Nobel da Literatura, sendo impedido pelo regime de se deslocar a Moscovo, pois, segundo a “União dos Escritores”, o autor “interpretou levianamente a Revolução de Outubro de 1917, as pessoas que a realizaram e a construção social da URSS”.
Com o novo pensamento é introduzida uma nova praxis, que se afirma na ruptura directa com o passado, com os ideias e modos de estar burgueses e que coloca o indivíduo perante novas possibilidades de resposta. Aos intelectuais, é-lhes pedida intervenção no acontecimento social e histórico, uma participação implicativa no real, através da criação de novas formas de manifestação artísticas. Entenda-se, não burguesas.
É neste contexto- eminência da guerra e a esperança numa nova ordem que se traduziria num novo homem- que o brilhante romance Melodia Interrompida se desenvolve. Sérgio Ossipovitch, jovem intelectual literato, chega a casa da irmã, em Ousolié, em 1916, cansado e desiludido do homem e das suas impossibilidades. O tempo era de guerra e os homens pareciam apenas saber falar dela. Sobre ela, apenas sabe dizer que é “a completa impossibilidade de imaginar a paz” (pg. 14). E nada mais saberemos do conflito que isto. E nada mais interessa saber, porque nele a protagonista é a paz e tudo o que ela permite imaginar, tendo como espaço o sonho do jovem intelectual a quem um dia foi dito que o mundo precisava do seu sonhar. Mas o tempo presente é outro.
Então numa extensa analepse, Sérgio regressa a Moscovo, ao ano de 1914, período em que trabalha como preceptor da família Fresnel e onde estabelece relações com diversas figuras femininas, ficando a conhecer a exploração e humilhação a que muitas delas são sujeitas, pelos homens, mas também pela sociedade: “O essencial .... é que em vez de se despirem, elas se vistam; o que mais conta é que, em vez de receber dinheiro, elas o dêem” (pg. 84). Ao tornar-se evidente a necessidade de mudança dos estado das coisas, Sérgio ambiciona “fazer” riqueza, partilhando-a, depois, com as mulheres. Mas atenção, uma riqueza que liberte e não que explore: “Fazê-la e não ganhá-la, bem entendido. O dinheiro ganho não é uma vitória e sem vitória não pode haver libertação” (pg. 84).
E como poderá Sérgio “fazer” riqueza, se as ideias são o seu labor e este a sua liberdade? O que a realidade nova pede ao intelectual é mais do que mera participação; pede-lhe que abdique da sua liberdade artística-, talvez o único contributo que poderia dar ao mundo- em prole do novo homem, de um pensamento que se afirma como novo humanismo, já não de liberdades individuais, mas de liberdades universais.
Mas o maior sonho de um anjo não é libertar o homem da sua condição, mesmo que tal signifique a alienação da sua própria liberdade, em função do bem comum? E Sérgio partilha esta vontade em erguer o novo homem, mais pleno na afirmação dos sonhos e mais universal na sua humanidade. Por isso, pensa publicar um drama em verso, repleto de imagens entendidas como “milagres do verbo, que é como quem diz: exemplos de uma submissão à Terra , total e rápida como a flecha. E, por consequência, são direcções que seguirá a sua moral de amanhã e o seu esforço no sentido da verdade” (pg. 121).
Deste esforço, Sérgio apenas nos deixou um esboço- quase realidade e quase verdade, não fosse a sua essência o sonho e a sua verdade humana-, que se apresenta como uma feliz parábola à condição do intelectual na Rússia pré-revolucionária, prenhe de expectativas, de sonhos e de possibilidades. Mas, ao longe, já se fazem ouvir os ecos da desilusão, o regresso à violência e à antiga ordem: “ (...) nestas violências que ecoam ao longe ele vê um regresso ao antigo estado de coisas, quando, afinal, esperava um renovo ainda desconhecido, isto é, total e irreversível.” (pg. 125/126).
Os homens, afinal, desconheciam outra linguagem que não fosse a da intolerância e o anjo, crente no sonho de reconstrução do novo homem abandona-o, desiludido. Sérgio acorda com os movimentos da casa. Está-se em 1916; o sonho esse é intemporal. E Outubro de 1917 está mais perto dos homens do que o novo humanismo.
Impossível, ainda, será ler este romance sem reconhecer nele o percurso do próprio autor. Por isso, mais difícil se torna não escrever algumas breves notas sobre este grande escritor da literatura universal. Boris Leonidovitch Pasternak nasceu em Moscovo em 1890 e morreu no dia 30 de Maio de 1960, em Peredelkino, na sua casa de campo. Escritor da grande e valorosíssima obra Doutor Jivago, é também autor de poemas “Minha Irmã, a Vida” (1922).
Apesar da difícil coexistência com o regime soviético, nem sempre a relação foi conflituosa. À semelhança dos seus protagonistas- Sérgio, preceptor em Melodia Interrompida e Iuri Jivago, médico e intelectual no romance Doutor Jivago-, o escritor no período pré-revolucionário também comungou dos ideais marxista. E, no seguimento desta comunhão escreve “Doença Grave”, livro de poemas e “O Ano de 1905”, de vertente mais histórica.
Com o estalinismo, o movimento atinge a plenitude da arbitrariedade, com perseguições, a que Pasternak não é poupado, principalmente porque Bukharine- herdeiro de ideias bolcheviques- o considerou um dos maiores expoentes das letras soviéticas, no I Congresso dos Escritores. Quase silenciado, sobrevive de traduções: Goethe, Shakespeare e outros
Votado à solidão por um regime que o apontava como inimigo e delator das verdades mais incontestáveis, esta é também a temática que mais se destaca na sua obra: a solidão do intelectual no processo violento da revolução e da história. No romance Melodia Interrompida este tema aparece já subtilmente esboçado, mas é no Doutor Jivago que atinge toda a sua plenitude e que será publicada em 1957, em Itália.
Em 1958 é-lhe atribuído o Prémio Nobel da Literatura, sendo impedido pelo regime de se deslocar a Moscovo, pois, segundo a “União dos Escritores”, o autor “interpretou levianamente a Revolução de Outubro de 1917, as pessoas que a realizaram e a construção social da URSS”.
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